sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Viajar com Steinbeck


Por causa de um cliente que nos veio visitar para partilhar connosco o ter realizado um sonho antigo - percorrer a Route 66 - fomos até à estante dos Estados Unidos da América e recordámos "Viagens com o Charley", que temos no original e na edição dos Livros do Brasil (esta, infelizmente, em vias de extinção).
Não sendo das obras mais conhecidas de John Steinbeck (em comparação com "As Vinhas da Ira" ou "A Pérola" - este último por vocação escolar, ou ainda o maravilhoso "Bairro da Lata" que o cinema ajudou a divulgar), este relato de uma viagem do autor pelo seu país, acompanhado do cão Charley, é um extraordinário conjunto de visões de apurado sentido crítico, por vezes politicamente bastante incorrectas e hilariantes, o que não é de mais elogiar nos dias que correm.
Por as palavras de Steibeck serem mais do que suficientes, fica um excerto, dos muitos possíveis:
"Devo confessar uma certa negligência a respeito dos parques nacionais. Não tenho visitado muitos. Talvez seja por encerrarem o único, o espectacular, o assombroso - a maior queda de água, o canhão mais profundo, o penhasco mais alto, as obras mais estupendas do Homem ou da Natureza. E prefiro ver uma boa fotografia de Brady do que o Monte Rushmore, pois é minha opinião que expomos e celebramos as singularidades do nosso país e da nossa civilização. O Parque Nacional de Yellowstone não é mais representativo da América do que a Diseyland.
Sendo esta a minha atitude natural, não sei o que me fez virar abruptamente para o Sul e atravessar a fronteira de um Estado para dar uma olhadela a Yellowstone. (...)
Um guarda de aspecto agradável do Parque Nacional fiscalizou a minha entrada e disse depois: - E quanto a esse cão? Não lhes é permitida a entrada a não ser à trela.
- Porquê? - perguntei eu.
- Por causa dos ursos. 
- Oiça - disse eu -, este é um cão único. Não vive à custa dos dentes nem dos colmilhos. Respeita o direito dos gatos a serem gatos, embora os não admire. Desvia-se de preferência a perturbar uma lagarta séria. O seu maior receio é que alguém lhe aponte um coelho e lhe sugira que o cace. Este é um cão de paz e de tranquilidade. Lembro que o maior perigo para os seus ursos será o melindre por serem ignorados pelo Charley.
(...) o Charley é um cobarde, tão profundamente cobarde que aperfeiçoou uma técnica para escondê-lo. E contudo mostrava todas as evidências de querer sair e matar um urso que o excedia de mil para um. (...)
Era demasiado demolidor dos nervos, um espectáculo chocante, como o de ver um velho amigo, calmo, tornar-se um louco. Nenhum conjunto de maravilhas naturais, de penhascos rígidos e de águas em catadupa, de fontes fumegantes, poderia sequer chamar a minha atenção enquanto aquele pandemónio continuava. Após mais ou menos o quinto encontro, desisiti, voltei o Rocinante e refiz o meu caminho."

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